Imaginem em pleno século XXI alguém defender uma atitude impositiva dos governos, intervindo e com isso reprimindo as escolhas da vida do cidadão, tudo para torná-lo mais saudável e longevo. Parece ficção científica, mas não é. Uma filósofa norte-americana realmente tem uma tese acerca disso e, ao ler a entrevista que replico abaixo, fiquei indecisa entre concordar ou rechaçar… Gosto disso, as caraminholas na cabeça fazem a gente rever ideias ou reforçar posturas, não é mesmo?
A ideia é impedir que o cidadão continue se ferindo – leia-se a fumar, comer gorduras e açúcar em excesso e endividar-se – e para isso Sarah Conly (doutora em Filosofia pela Universidade Cornell, especialista em ética, moral e psicologia das massas) sugere que o governo elimine algumas liberdades de escolha. Segundo ela, isso faria com que o cidadão se concentrasse nas opções que podem fazê-lo saudável e feliz. A tese é bem embasada, tanto que Conly, professora na Universidade de Bowdoin, escreveu um livro sobre o tema, “Against Autonomy: Justifying Coercive Paternalism” (Contra a autonomia: Justificando o paternalismo coercivo, Cambridge University Press, 2012, ainda sem versão em português).
Segundo a matéria que li, a filosofia do paternalismo libertário sugere que o governo deveria ressaltar para o cidadão qual é a opção mais benéfica, mas sem eliminar as demais. Parece loucura mas já vivemos um pouco disso no Brasil, onde a Anvisa tem tomado decisões que alteram nossas escolhas. Se aqui está proibida a presença de aditivos como menta e chocolate em cigarros, em Nova York a venda de refrigerantes em copos de tamanho grande (acima de 470 ml) foi alvo de decisões e reviravoltas judiciais.
Mas quem deve decidir: o consumidor ou o governo?
Sarah Conly defende que, em algumas situações, o governo tem de tomar decisões no lugar do cidadão, em vez de deixar abertas as opções.
“O governo dispõe do tempo e dos recursos necessários para descobrir o que não devemos fazer. Por exemplo, na maioria dos países desenvolvidos, o governo decide quais tipos de medicamentos podem ser comercializados, em vez de deixar qualquer um vender o que quer. Esse também é o caso dos governos que estabelecem normas de segurança para carros, em vez de deixar para nós a decisão sobre quão eficientes devem ser os freios. Isso nos priva de um certo tipo de liberdade de escolha, mas não nos importamos com isso, porque o exercício dessa liberdade tomaria muito tempo e levaria a muitas escolhas erradas. Mesmo nos casos em que podemos conhecer os fatos, muitas vezes cedemos à tentação de fazer o que é ruim para nós mesmos. Sabemos que não é saudável comer muita comida gordurosa e de preparo rápido, mas nos EUA as pessoas ainda comem muito esse tipo de refeição, e há uma epidemia de obesidade. Nos últimos anos, os economistas comportamentais e psicólogos sociais têm aprendido muito sobre os tipos de erros que rotineiramente fazemos ao escolher. Quero usar essa informação para nos ajudar a escolher melhor. Quero estender esse tipo de política que nós já temos, na medicina e na segurança dos automóveis, para outras áreas, especialmente na saúde pública.”
A grande questão, para mim, é pensar se o paternalismo não poderia criar uma sociedade mimada, incapaz de aprender com erros… Na entrevista há inclusive menções a grandes pensadores, como John Stuart Mill, H.L. Mencken e John Locke, que construíram a tradição libertária e consagraram o direito individual.
A professora justifica suas ideias:
“Acho que realmente temos muita dificuldade em aprender com os erros. Se fôssemos bons em aprender com os erros, não fumaríamos, nem compraríamos o que não podemos pagar, nem comeríamos demais. Sabemos que essas são más decisões mas, muitas vezes, elas não são racionais. Novas normas poderiam nos ajudar a evitar os caminhos que gostaríamos de evitar, se estivéssemos pensando mais claramente.
(…)
[Credito esta defesa à] mesma pessoa que deu o argumento mais famoso contra os regulamentos paternalistas, John Stuart Mill. Ele disse que todos temos a obrigação de ajudar uns aos outros e trabalhar para a felicidade uns dos outros. A diferença é que Mill pensava que as leis paternalistas seriam desnecessárias para fazer as pessoas felizes. Ele não sabia o que nós sabemos hoje sobre a maneira como tomamos decisões. Agora, sabemos que muitas vezes as pessoas fazem escolhas que não dão a elas o que elas querem, a felicidade. Acho que, se Mill estivesse vivo hoje e soubesse o que sabemos sobre a psicologia das decisões, ele mudaria de idéia e abraçaria os regulamentos paternalistas.”
E você, o que acha? Onde acaba a liberdade individual e começa a regulamentação dos governos?
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